Onde estava o povo brasileiro? Essa questão, que talvez possa parecer profundamente pedante e retórica para muitos intelectuais progressistas inconformados com o resultado do pleito eleitoral no 1º turno da eleições presidenciais deste ano, na verdade deve sua razão de ser a uma poderosa fantasia social que anima parte importante do núcleo duro do pensamento político brasileiro: sua aposta numa possível vocação ontológica do povo para o progresso, para a “felicidade” e/ou para a tão desejada “revolução”. Na literatura, nas artes, no cinema, na gramática do pensamento social brasileiro, esta é mesmo uma das características mais importantes da forma como se construiu nossa imaginação política sobre o povo no Brasil.
Provavelmente, muitos de nós estamos perplexos com o
desempenho nenhum pouco desprezível de Jair Messias Bolsonaro nas eleições do
último domingo. Pouco mais de 51 milhões de votos válidos, contra pouco mais de
57 milhões atribuídos à Luiz Inácio Lula da Silva. Soma-se a esta votação
expressiva do atual presidente da República, a eleição de governadores,
senadores e deputados federais identificados como membros da ala mais radical
do bolsonarismo. Na contramão deste acontecimento político, acreditava-se que o
conjunto das demandas populares e o circuito de afetos produzidos pela
“ingerência” de Bolsonaro durante a Pandemia do Corona Vírus, e por toda
diversidade de violência política por ele cometida iriam assumir uma força tão
avassaladora no sentido de suas equivalências na luta contra o
neoconservadorismo brasileiro que a vitória de Lula seria possível já no
primeiro turno. Estávamos errados. O inverso também ocorreu. Um inverso que não
foi devidamente captado pelas pesquisas eleitorais e seus métodos
tradicionais. Mas e o povo, onde estava? Aqueles que responderam aos questionários
dos Institutos de Pesquisa não compareceram às urnas? Ou faltaram com a
verdade? Ao que parece, para responder a essa questão, é necessário insistir
numa outra pergunta: que, de fato, é o povo? É possível captar o povo
naquilo que ele mesmo diz?
A literatura especializada, especialmente aquela inspirada
nos trabalhos de Ernesto Laclau, tem insistido no caráter radicalmente vazio e
flutuante deste significante. Por um lado, o povo é uma identidade impossível e,
ao mesmo tempo, necessária; por outro, a identidade popular está sempre em
disputa no universo da discursividade da vida social. Resumidamente, essa forma
de ver a questão da identidade popular nos orienta no sentido de desconfiarmos
profundamente de uma suposta vocação ontológica do povo para a transformação do
social (no sentido “progressista”, “democrático”, como se queira ou não). Não
há um povo pré-fabricado, existente anteriormente das batalhas hegemônicas. Por
conseguinte, o comportamento eleitoral do último domingo não nos revela algo
como a natureza da identidade popular (ainda que “perversa”, como
incorretamente se imagina muitas vezes). O resultado das eleições presidenciais
nos revela, no máximo, a capacidade dos modelos e processos de subjetivação
política em constituírem-se como forças hegemônicas na sociedade. O lulismo demonstrou-se forte, muito forte; o
bolsonarismo, também. Muito além do que esperávamos, diga-se de passagem.
Assim, somos convidados a repensar todo um modelo sócio-analítico
a partir do qual aprendemos a localizar o povo brasileiro. Toda uma sorte de
lógicas mediante as quais acreditávamos que poderíamos captar algo como sua
própria natureza, seus desejos e fisionomia. Definitivamente, o povo não é uma
forma de pura presença que se manifesta de acordo com a vontade do analista;
também não é a base ontológica (pré-fabricada, concretamente auto-transparente)
dos processos históricos. O povo não possui uma “natureza de bode”, como diria
Shakspeare; ou uma “natureza insurrecional” como diriam os historiadores da
ortodoxia marxista. O povo também não é burro, como gostariam de dizer (o que
pensam) muitos de nossos liberais. E, contudo, o povo é. Sem dúvida
alguma. O povo é aquilo que se faz dele. O signo de alguma coisa, e não de
outra, sempre. Deve sua existência à ação de um Outro. Deve sua emergência a um
conjunto de forças políticas antagônicas e hegemônicas. Além disso, ele também
não é o Todo social. Como diz Laclau, “existe sempre algo, no povo, que escapa
ao próprio povo”. Para muitos, é
justamente este excesso não incorporado no último domingo, que deverá garantir
a vitória da democracia no segundo turno. Ele virá, ao menos parte dele; mas,
ainda assim, o povo jamais poderá ser lido como a totalidade orgânica que dá
nome ao conjunto de todos os nossos afetos e demandas políticas.
Ainda que o crepúsculo de um dos ídolos do
neoconservadorismo contemporâneo venha a romper no horizonte próximo, haverá um
povo com o qual será preciso dialogar e cujo diálogo não será nada fácil.
Haverá povos para salvar, povos para convencer, povos para educar, povos para
cuidar, e, certamente, um povo a combater democraticamente. E haverá, também,
um povo muito resistente ao convencimento das vozes democráticas. Não é
possível negar a capacidade do bolsonarismo de fabricar povo. Povo graúdo. Um
povo que lê a história brasileira ao seu modo. Do modo como vem religiosamente
aprendendo a ler. A história, por sua vez, constantemente em movimento, marcada
por uma multiplicidade de regimes de historicidade, como insistiu Laclau, “não
é um processo autodeterminado. A opacidade de uma exterioridade irrecuperável
sempre empanará as categorias que definem a interioridade”. O que vale para a
história, vale também para o seu sujeito: o povo.
Finalmente, tão inevitável quanto a exterioridade à qual se
refere Laclau, é a imposição do populismo enquanto lógica política hegemônica
na contemporaneidade. Apesar do apelo insistente de muitos intelectuais,
notadamente liberais, de que o problema da democracia reside na estrutura
“irracional” do populismo e seus estratagemas retóricos (diagnóstico que muitas
vezes acerta o alvo mas peca na estratégia analítica), o populismo descrito por
Laclau e Chantal Mouffe é uma lógica política cuja ação se tornou inquestionável,
incontornável, para além de bem e mal. Se esta é a lógica que tem servido de
combustível aos processos de subjetivação política e, portanto, aos protocolos
de identificação política no Brasil, nos resta torcer, e, sobretudo, lutar,
para que o povo que ela venha a produzir não se torne, ele mesmo, o inimigo
mortal da própria democracia brasileira. Uma democracia tão jovem e
constantemente convidada a morrer; ultimamente, muito em razão da fome da
necropolítica em dar morte não apenas a certos corpos e sujeitos, mas,
inclusive, àqueles regimes políticos que deveriam permitir à vida esgotar todas
as suas possibilidades de realização.
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